NOTAS Históricas, uma reflexão.
A Gripe Espanhola foi a maior Pandemia da História, aconteceu de janeiro de 1918 a dezembro de 1920, tendo atingido sua maior virulência no inverno de 1918 no hemisfério norte. Infectou mais de 500 milhões de pessoas por todo o mundo, um quarto da população da época, matando um número estimado de 40 milhões de pessoas, mais gente que a Primeira Guerra Mundial que acabava de ser encerrada deixando 15 milhões de mortos.
A doença, que teve seus primeiros registos nos Estados Unidos ainda durante a Guerra, chegou ao Brasil através de membros da missão médico-militar da Marinha que voltaram da África-francesa, já doentes dentro do navio, e contaram 100 marinheiros mortos pela gripe. Na capital da época, o Rio de Janeiro, em 2 meses, levou 12.000 pessoas a óbito, e, ao todo, mais de 300.000 mortos foram contabilizados pelo País.
Imagem da Gazeta de Notícias: “O Rio é um vasto hospital.”
A gripe espalhou os delírios, o pânico, o suicídio, a morte, atingiu o presidente da República – Rodrigues Alves – que foi vitimado pela doença. Fez as escolas aprovarem todos os alunos e causou a criação da caipirinha como remédio. Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, precisou construir um cemitério para enterrar seus 1.316 mortos. Os estados do Nordeste foram infectados pelas das pessoas que estavam nos navios que paravam pela sua costa.
A doença voltou a se alastrar pelo mundo em 2009, matando 18.036 pessoas, muito menos que na sua primeira versão de 1918, claramente porque hoje as tecnologias de disseminação de informações e o conhecimento global auxiliam na diminuição do impacto, como podemos observar hoje no caso do Coronavirus, uma vez que a troca de informações é veloz e colabora para a tomada de medidas.
Naquele contexto de 102 anos atrás, o movimento escoteiro completava sua primeira década de existência, ainda com as experiências e treinamentos de Mafeking bem vivos. O escotismo foi uma das entidades a colaborar, profundamente, com as ações humanitárias durante a Gripe Espanhola. As principais ações aconteceram com base na Associação de Escoteiros Católicos do Brasil (AECB), Rio de Janeiro, e na Associação Brasileira de Escotismo (ABE), em São Paulo.
Imagens da Revista ‘A Cigarra’: Escoteiros de São Paulo atuando nos “Telegraphos” e apoiando nas entregas dos Correios.
A mobilização dos escoteiros da ABE, em São Paulo, como relata Fabrizio Franco em seu trabalho acadêmico, aconteceu dando apoio a Secretaria de Serviços Sanitários do Estado, e existem citações de atuação em diversos municípios além da capital, como Sorocaba, Santos, Campinas, Itu, Bauru, Jaú, Tietê, Ibitinga e São José do Rio Pardo. Na capital foram 106 escoteiros trabalhando de outubro a dezembro, sendo 26 deles se revezando em substituição aos operadores do telégrafo que ficaram doentes. Eles também entregaram remédios em domicílio colaborando com 27 farmácias do centro de São Paulo, se juntaram para colaborar com equipes da Cruz Vermelha e nos Hospitais, contabilizaram o número de mortos e leitos repassando os dados à Secretaria, e ajudaram famílias a localizar seus parentes. A colaboração dos escoteiros paulistas foi aclamada como “Dívida de Honra” pelo jornal Correio Paulistano.
No trabalho acadêmico “A gripe espanhola em Sorocaba e o caso da fábrica Santa Rosália, 1918: contribuições da história local ao estudo das epidemias no Brasil”, do departamento de Medicina da USP, é vista citação da colaboração dos escoteiros da ABE em Sorocaba, conforme a citação do Prof. Doutor José Ribeiro Neto:
“Resumindo a crônica moderna de Sorocaba para o terceiro tomo de minha pequena História, deparei com a Gripe Espanhola de 1918. Médicos, prefeito, farmacêuticos, hospitais improvisados, escoteiros, sim, escoteiros de bicicleta levando receitas aviadas até as casas dos doentes, fábricas paradas, um Deus nos acuda! (Almeida, 25 dez. 1964, p.4).”
No Rio de Janeiro, capital do País naquela ocasião, os escoteiros participaram das mobilizações civis encabeçadas pela Igreja Católica e pela Cruz Vermelha. Podemos citar as ações desenvolvidas a partir da sede da Associação de Escoteiros Católicos do Brasil, na Paróquia de São João Batista da Lagoa, em Botafogo, onde até hoje existe o 2º Grupo Escoteiro São Joao Batista da Lagoa, que atuou com valentia nesse evento.
O jargão diz que a história se repete e estamos novamente às portas de uma Pandemia, que iniciada na China, vem se alastrando pelo mundo. Tendo chegado ao Brasil, temos as instâncias governamentais em pleno debate e todas elas buscando as melhores medidas para proteger seu povo. A experiência dos escoteiros de 102 anos atrás, nos possibilita ver com clareza as grandiosas e corajosas ações desenvolvidas pelos nossos rapazes, no relato do livro “Um pouco de História, de Sampaio Junior”, transcrito a seguir.
Foto: Escoteiros Católicos de Botafogo preparando a sede do Patronato para socorrer vítimas da epidemia de 1918.
“A MAIOR BOA AÇÃO PRATICADA
No período mais intenso (12 de Outubro a 14 de Novembro” da epidemia da ‘gripe espanhola’, em 1918, os escoteiros do Lagoa tiveram ocasião de praticar a maior boa ação coletiva, só igualada por ação idêntica, praticada pelos seus irmãos de São Paulo, da Associação Brasileira de Escoteiros, demonstrando aos incrédulos o grande valor do Escoteirismo.
Pelos morros, nos barracões infectados e nas casas de habitação coletiva, os pobres chefes de família, desesperados, viam suas companheiras de infortúnios e seus filhinhos queridos morrerem à mingua; quando o Padre André Arcoverde, Vigario da Paroquia, resolve organizar uma grande comissão composta de senhoras e senhores da melhor sociedade, sob a direção de Edmund Leonel Lynch, para organizar os socorros à pobreza de Botafogo. Essa comissão desejando tornar o mais eficiente possível os seus trabalhos, recorreu aos escoteiros, que solícitos, apresentaram-se em número de 48, prontos a prestarem um serviço ao próximo.
Os socorros, aliás valorosos, prestados por esses 48 meninos, que expunham-se ao contagio da moléstia, foram os seguintes:
– visita, casa por casa, aos enfermos do bairro, em todas as ruas, mesmo as mais inacessíveis e morros;
– manutenção pelo dia inteiro de um posto de socorro e de três ambulâncias providas de todos os socorros, de alimentos, vestuários, medicamentos, médicos, e etc;
– distribuição desses socorros a mais de 4.500 pessoas, das quais 1.500 tiveram socorros diários durante mais de duas semanas;
– auxilio em farmácias, na confecção de receitas e transporte de remédios;
– hospitalização de muitos enfermos e assistência a moribundos;
– guarda a cadáveres e enterro de muitas vitimas da epidemia.
Esses socorros subiram a mais de vinte contos de reis, sendo distribuídos muitos milhares de quilos de arroz e açúcar; mais de 2.000 latas de leite; grande quantidade de roupas, colchões e muitos medicamentos.
A Liga de Defesa Nacional, em vista desses serviços, resolveu reconhecer a Associação como sua filiada, dando-lhe todos os direitos e regalias concedidos à Associação Brasileira de Escoteiros.”
Que os escoteiros do passado, e suas histórias, sejam sempre inspiração para nortear o movimento no presente e futuro. Pois é na hora da emergência e das dificuldades que as qualidades dos escoteiros são chamadas para o serviço ao próximo.
autor:
ANDRE TORRICELLI F. DA ROSA é bacharel em direito, pós graduado em direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra, em Portugal, e atualmente cursa MBA em Turismo pela UFF no Rio de Janeiro. Foi Conselheiro Nacional, Membro da Comissão Nacional de Ética e Disciplina, Coordenador Nacional dos Escoteiros do Mar, Coordenador Nacional Católico da União dos Escoteiros do Brasil e do Cone Sul pela CICE-América, além de ter sido Presidente do Centro Cultural do Movimento Escoteiro.
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